quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Angelo Bucci analisa o trabalho de Solano Benítez

... não estamos feitos de outra substância senão dos outros.
POR ANGELO BUCCI

Recentemente ouvi a citação ao lado de Solano Benítez. Ele não prescinde dos poemas para nos fazer ver as razões de seus projetos de arquitetura. A fonte, que ele citava, eu já não me lembro. Nem me lembraria, pois é na sua atuação que essas imagens ganham vida intensa, é nela que o seu sentido perdura na memória da gente. Os poemas são parte do arsenal que ele usa para nos fazer ver seu campo de ação, seu ideal de cidade e a causa em que ele se engaja.

Poesia ali é matéria. Melhor, é técnica. É ali, no campo simbólico, que ele confia a direção e o sentido das suas ações. Para ele, poesia é bússola, coordenada, é rumo de navegação.

Então, cabe à gente se perguntar: em que nave ele navega?

A nave, no caso, são as casas do Solano.

Mas como elas estão feitas?

De tijolos quebrados, alguém poderia responder. Aparentemente correta, essa resposta é profundamente falsa. Seria tola, como se boiasse perdida na superfície do mar em que ele navega, se não fingisse responder com o que sabe não ser o bastante. Pois a resposta esconde atrás da aparência de um material, em si precário, a elaboração cuidadosa e a sofisticação arquitetônica que se mobilizam na realização desses projetos.

É, afinal, uma resposta inaceitável. Pois, nessas obras, não existe a dimensão superficial.

Para olhar essas naves é preciso mergulhar no mar em que elas navegam e ali, imerso, saber ver. Sendo assim, não se partirá de outro pressuposto senão da consideração de que ali não existe um único tijolo quebrado. Tudo ali está solidário num conjunto armado de tal modo coeso que a unidade mínima não pode ser nada menos do que a obra inteira. Ali tudo tem integridade, ali todos os tijolos são perfeitos.

Suas obras são os templos da essência.

Essência de quê?

Da coerência de uma obra feita ao longo da vida do arquiteto.

PRECEDENTE

Em 1994 os trabalhos de Solano Benítez foram apresentados pela primeira vez fora do Paraguai. Foi em Portugal, por ocasião dos eventos de Lisboa Capital Ibero Americana da Cultura. Estávamos ali num grupo de - então, uns mais que outros - jovens arquitetos brasileiros: eu, Alvaro Puntoni, Luciano Margotto, Luiz Mauro Freire, Vinicius Andrade, Marcelo Morettin e Anna Julia Dietzsch. Todos éramos convidados para o evento com passagens pagas pelo governo brasileiro e hotel oferecido pela prefeitura de Lisboa.

Solano Benítez era o único representante paraguaio.

Nós, os brasileiros, estávamos ali não sem entusiasmo, mas também de certa maneira por força das circunstâncias.

Ele, por determinação. Pagara as próprias passagens; saíra do seu país pela primeira vez com o propósito de expandir seu campo de diálogo como arquiteto.

Logo nos juntamos como se fôssemos uma só delegação latino-americana.

Naquela época não era fácil entender as condições, as razões e os propósitos do seu trabalho.

Ele operava num contexto - aquele mesmo mar - desconhecido para nós. Trabalhava a partir de referências diferentes daquelas em que nós havíamos sido formados e produzia uma obra que não se podia classificar nas categorias que acreditávamos dominar.

Hoje, é mais fácil perceber isso. É mais simples notar que não discordávamos. Mas nos faltavam as palavras de maior entendimento. Afinal, vínhamos de contextos, que apesar de tão próximos e de tantos problemas comuns, eram feitos historicamente distintos. Assim, não compartilhávamos uma mesma base cultural solidamente constituída. Ali soubemos que se quiséssemos dividir uma identidade, ela precisaria ser construída.

Aquelas primeiras obras de Solano que vimos em Lisboa demonstravam que ele aceitava as condições e recursos disponíveis no contexto paraguaio - materialmente precária como ilustra um tijolo quebrado; culturalmente rica como ilustra a condição bilíngue da população de um país que não aniquilou a cultura precedente ao processo de colonização -, mas aceitava aquelas condições sem, contudo, resignar-se a elas. Ou seja, ele não se limitava à primeira configuração possível dos recursos de que dispunha. Ao contrário. Já ali, ensaiava - com protótipos submetidos à prova de cargas, com análises de esquemas estruturais que isolavam o papel de cada elemento resistente - a invenção de um repertório próprio de que ele se servia como uma plataforma para lançar os seus projetos. Depois, esse repertório ganharia um nível de elaboração que, creio, nenhum de nós poderia então vislumbrar.

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